INÍCIO
VOLTAR
OS CAMPOS DE VÁRZEA NO BRASIL
Guilherme Wisnik
Este texto surge de dois artigos publicados anteriormente, aqui reunidos num único. São eles Diversidade social e racial: modernismo, multidão e ensaios de democracia
No mesmo ano, o Brasil comemorava 100 anos de sua independência em relação a Portugal. Junto com as festividades oficiais, acontecia também a disputa do Campeonato Sul-Americano de Futebol, no Estádio das Laranjeiras, no Rio de Janeiro. A seleção brasileira, àquela altura, ainda não colecionava títulos. A força continental – e também mundial, na época – era o Uruguai. Apesar disso, o futebol já era uma paixão amplamente disseminada no país, e reunia multidões de fãs para torcer por clubes e pela seleção nacional. Naquele ano, o Brasil sagrou-se campeão continental, iniciando um caminho de glórias que o levaria, décadas mais tarde, a se tornar o país com mais títulos em Copas do Mundo.
Conta a crônica da época que, à medida que a seleção avançava na competição, disputada no Rio de Janeiro, torcedores começaram a se reunir espontaneamente no Vale do Anhangabaú, em São Paulo, em busca de notícias. Ficava ali a sede do maior jornal da cidade, o Estado de S. Paulo, cujos jornalistas passaram a receber relatos de seus colegas do Rio de Janeiro, por telefone, sobre eventuais gols ou lances decisivos das partidas – numa época, convém lembrar, em que ainda não havia transmissão de rádio. Com isso, passaram a escrever os placares das partidas em grandes folhas de cartolina, e a pendurá-las nas janelas do edifício, que tinha apenas 6 pisos. Fato que foi o responsável pela aglomeração inédita naquele lugar, demarcando o início da ocupação do Vale do Anhangabaú como local preferencial de reunião coletiva para assistência de espetáculos artísticos e esportivos, assim como para manifestações políticas. Não por acaso, exatos 100 anos depois daquele acontecimento originário, durante toda a Copa do Mundo de 2022, uma arena do Fifa Fan Festival reuniu em torno de 40 mil pessoas por dia, no mesmo local, ao redor de um telão de mil polegadas.
Mas se, em 1922, o futebol se disseminava como paixão popular no Brasil, a prática do amadorismo ainda se impunha, afastando atletas que precisassem de salário para sobreviver. Recorte social que implicava, também, exclusão racial. Igualmente, se olhamos para as imagens das arquibancadas dos jogos no Estádio das Laranjeiras, na época, vemos ainda um público de elite, composto por pessoas brancas e elegantemente vestidas.
Na tela Operários, de 1933, Tarsila do Amaral figurou um mosaico plural de rostos de homens e mulheres de diversas etnias, que aparecem contra um fundo de chaminés de fábricas e construções modernas. O signo da metropolização vem associado à emergência da sociedade de massas, com claro acento popular, somado à percepção de uma coletividade formada por migrantes e imigrantes, que passava, então, a ser valorizada.
Que Brasil era aquele que se anunciava? Um país cuja urbanização acelerada trazia pressões democratizantes. Onde populações carentes passavam a jogar “peladas” nas amplas áreas de várzea surgidas ao lado dos leitos dos rios, e onde os campos de futebol iriam se configurar como espaços públicos informais em meio a densas comunidades desassistidas pelo Estado.
Prefigurada pela arte moderna, essa sociedade feita de forças contraditórias e em disputa inventou um jeito próprio e afirmativo de jogar futebol, algo que só foi possível pela presença negra e indígena, sem desconsiderar outros povos que para cá vieram. Significativamente, essa presença popular marcou também as arquibancadas e “gerais” dos nossos estádios a partir de meados do século XX, fazendo deles uma espécie de laboratório, ou microcosmo, de uma experiência democrática que o país, no entanto, ainda ficava devendo.
Muitas das cidades brasileiras surgiram e se desenvolveram em regiões fartas de rios e córregos. Na expansão de suas manchas urbanas, evitaram ocupar as áreas de várzea desses cursos d’água, sempre inundáveis. Historicamente, essas vastas planícies se tornaram terrenos baldios, e foram, em geral, ocupadas por campos de futebol com piso de terra, nos quais grandes campeonatos informais, baseados em formas populares e amadoras de auto-organização, emergiram. São os chamados “campos de várzea”, que deram a base para o surgimento de um grande número de atletas que depois vieram a se profissionalizar. Tais campos, encontrados em todas as regiões do Brasil, hoje, no entanto, estão em vias de desaparecimento, dado o avanço do mercado imobiliário sobre essas áreas residuais, e sua incorporação ao território “legal” das cidades, com edifícios de habitação e, sobretudo, de escritórios. Talvez se deva a isso, especula-se, a decadência atual do futebol brasileiro...
Com efeito, a presença desses campos de futebol populares, palco de intensas disputas amadoras, persiste ainda em meio ao tecido urbano das favelas. Algo digno de nota, já que a informalidade dos processos que levam à ocupação urbana dessas áreas com moradias de baixo poder aquisitivo é guiada pela lógica da densidade máxima. Alheias ao planejamento do estado, e a qualquer norma de regulação urbanística mais vertical, guiada pela noção de esfera pública, as favelas são organizações razoavelmente horizontais que, no entanto, engendram formas importantes de reflexão sobre a coletividade. Daí que a forte presença de campos de futebol em meio a esses espaços demarque um sentido particular de espaço público. Sim, esses campos são os verdadeiros – e praticamente únicos – espaços públicos das favelas, usados pela comunidade não apenas para as partidas de futebol, mas também para as assembleias coletivas e as festas. São, portanto, espaços de resistência comunitária em contextos de grande precariedade urbana e ausência de equipamentos públicos formais. E, em um plano mais geral, são também símbolos de resistência ao avanço contínuo do individualismo e da especulação imobiliária nas cidades.
Considero esse um fenômeno de grande relevância quando refletimos sobre o urbanismo no Brasil. Pois o Brasil é um país no qual a presença dos espaços públicos formais decresce continuamente. Após décadas de incentivo ao uso dos automóveis individuais nas cidades, e a franca prevalência dos interesses da especulação imobiliária sobre qualquer sentido mais amplo de esfera pública, o que vemos cada vez mais é a destruição de parques e praças, e a privatização crescente de seus espaços e de suas formas de gestão. Nesse sentido é que a presença desses vazios urbanos em meio aos densos espaços das favelas, como resultado de organizações autogestionárias e desassistidas pelo estado, é tão relevante como fenômeno tanto urbano quanto cultural e esportivo. Algo que foi belamente registrado pelos fotógrafos Leonardo Finotti e Ed Viggiani em seu ensaio “Urban Euphoria in Brazil”.
Um dos resultados expressivos dessa sobrevivência poderosa do futebol não profissional e popular no país foi o surgimento da chamada “Taça das Favelas” em 2012, um grande campeonato de equipes amadoras oriundas justamente das favelas. Campeonato que já se tornou gigante, extrapolando os próprios campos dos bairros, e ganhando os estádios profissionais, sem, no entanto, se tornar uma estrutura profissional. O sucesso da “Taça das Favelas” representa a força dessas organizações comunitárias e capilares, e sua aparição midiática é um resultado da vitalidade desses espaços públicos resistentes e verdadeiros, que são os campos de futebol amador nas favelas. Significativamente, desse torneio têm surgido atletas que depois são contratados por clubes profissionais, como no caso notório de Patrick de Paula, que passou rapidamente do torneio amador para a consagração, sendo o autor, ainda muito jovem, do gol que deu o título de Campeão Paulista ao Palmeiras em 2015.
Hoje, o legado social e urbano dos megaeventos esportivos ocorridos no país – a Copa do Mundo de Futebol em 2014, e os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, em 2016 – é polêmico e traumático. Pouca infraestrutura urbana de transporte e habitação foi de fato implementada. Muitas comunidades carentes foram removidas em processos violentos de gentrificação, e suas tentativas de resistência demarcaram eventos de polarização política agudos. Em especial, intensas manifestações populares em 2013, organizadas em torno do lema “Não vai ter Copa”, e que pediam que o “padrão Fifa” fosse aplicado também às obras de interesse social, convulsionaram as ruas do país. E se, por um lado, a vergonhosa derrota da seleção brasileira para a alemã pelo placar histórico de 7 x 1, em 2014, representou um abalo (talvez definitivo) em nosso orgulho futebolístico, o sequestro posterior da camisa amarela da seleção brasileira de futebol pelos movimentos de extrema-direita colapsou a autoimagem do país em relação a esse esporte tão querido e popular.
Cada vez mais fica difícil imaginar a repetição pacífica daquele congraçamento de torcedores no Vale do Anhangabaú, há pouco mais de cem anos atrás, esperando notícias das partidas de sua seleção em folhas de papel penduradas na janela. O Brasil de hoje está rachado, tal como vimos no dia da votação do impeachment da presidente Dilma Rousseff na Câmara dos Deputados em Brasília, em 2016, em que a polícia precisou construir um muro dividindo ao meio a Esplanada dos Ministérios. De um lado estavam os defensores da presidente, vestidos de vermelho, e ligados ao Partido dos Trabalhadores. E, do outro, os manifestantes conservadores, vociferando palavras de ódio, e vestindo a camiseta amarela da seleção de futebol. Entre eles, nenhuma forma possível de mediação ou equilíbrio. Apenas um muro. Uma rachadura ideológica. Um fosso.