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INFERNO CHEIO DE CÉU ESTRELADO
Priscila Valadão
10 anos em Portugal
Entre muitos encontros e desencontros, todos eles cabem em mim.
Relembro o motivo que me trouxe aqui. Ficou perdido pelo caminho o que me estruturava como pessoa. A crença num Deus misericordioso, mas vingativo. Que leva para o céu e para o inferno.
Se creres em mim, será salvo tu e tua casa, disse ele através de Paulo.
A minha casa se desfez muitas vezes desde que aqui chegamos.
Uma salvação no mundo vindouro, onde o leão e o Cordeiro habitarão mais uma vez em mansidão. Juntos. Onde não faltará casa, nem comida. Onde todos terão um corpo incorruptível e, a depender dos teus atos na Terra, você será dono e proprietário de uma mansão só tua e ruas de ouro com o teu nome.
Se creres.
Se não, morrerá para sempre onde há choro e ranger de dentes.
Analisando bem, Portugal deve ser o céu.
Assim me sinto quando vejo o olhar sincero dos meus filhos, da minha mãe e madrasta, dos meus amigos. No amor deles, no respeito, na vontade de me acolherem. Mesmo quando eu falho tanto para com eles.
Quando me deito na minha cama, dada por um amigo, quando entro em casa e fecho a porta do meu abrigo, indicado por uma amiga, quando sou abraçada pelas minhas amigas do trabalho, onde depois de muitos anos não me sinto em disputa com alguém.
Nem o wizink, nem as contas atrasadas e empréstimos, nem as sacanagens, me lembram que existe um inferno.
Quando estou na roda de samba. É o céu.
Daí vem o inferno, porque isso de céu ser bom, só se nossas memórias forem de fato apagadas tipo Men in Black.
O racismo e a xenofobia no meu primeiro trabalho com muita violência, o primeiro agente do SEF e a humilhação dentro de uma salinha só eu e ele, a violência física que meu pequeno sofreu das mãos de uma professora, os pedidos desesperados ano a ano por comida e livros gratuitos na escola deles, os trabalhos na faxina, no restaurante, a dificuldade de entender a língua, o prato que só tinha batatas doadas, a depressão da minha filha que sempre foi sorridente, a incompreensão do meu filho adolescente que deixou os amigos e as oportunidades para trás, as ausências das datas familiares importantes, a eterna sensação de ser um alien até em karaokes entre portugueses, a aprendizagem do que é luta de classes e a tentativa exaustiva de permear meios onde todos se conhecem e você é apenas uma brasileira emocionada, inconstante, sem diploma, que não é do bairro, nem da cidade, muito menos do país, a falta de casa, de dinheiro, de pertencimento, de coragem, de palavras onde caibam todas as emoções.
Mirandela, Porto, Lisboa.
Céu e inferno.
10 anos de várias versões de mim como mulher, brasileira, mãe e filha desnaturada, amiga sumida, militante assumida não assumida.
Tenho feito o que posso com tudo o que tenho.
Só preciso saber exatamente o que tenho depois desse inferno cheio de céu estrelado.
Priscila Valadão em carne, osso e nervos. Tudo isso queimando e rangendo dentes, querendo muito sentar diante do Cordeiro e comer do seu banquete.